segunda-feira, 2 de abril de 2012

Numa casa portuguesa, parte I: a epifania*

Manolo Quintão era um comerciante português que ficou com medo do Franco no país vizinho e resolveu emigrar para terras longínquas, quentes, cheias de índios, frutas exóticas, árvores grandes e gente falando errado a mesma língua dele, mas com sotaque.

Cá apaixonou-se pela distribuidora de rifas do Clube Social Português, Leonor Bastos. Casaram-se em três meses, tamanha era a vontade de se conhecerem melhor - e logo. Menos de 9 meses depois, nasceu a primeira de suas três filhas. Alguns dizem que Manoelita nasceu prematura; outros, prematuramente, chegaram a diferentes conclusões.

Apesar da beleza estonteante de Leonor, Manoelita nunca foi bonita, tendência que se verificou, também, em suas irmãs gêmeas Manoela e Manoelina. Leonor sempre disse a Lita, Lela e Lina que a beleza delas era "exótica", o que intrigava as meninas, que cresceram ouvindo que o país em que nasceram é que era exótico. 

Mas elas não eram nada parecidas com o restante daquele povo cor de canela e cheio de ginga.

Sentindo-se culpado por ter criado raízes em local que não dava alegrias a suas filhas tão amadas, e, também, por ser o detentor do gene dominante que passou às suas crias, Manolo andava amuado, com os olhos baixos, em seu armazém de secos e molhados.

Até que um dia quente de fevereiro, ao invés de enxergar baratinhas e rabos de lagartixa no chão atrás do balcão, Manolo teve uma visão que mudou para sempre a vida da família Bastos Quintão. Lita, então com 15 anos, mas ainda uma moleca, tinha se permitido tirar os sapatos enquanto o horário de pico do Armazém BQ ainda não chegava.

Ao ver seu pai fitando com determinação seu par de pés, Lita logo começou a tentar se explicar. Estava quente, ela já iria colocar o sapato fechado, foi só por um minutinho, não fique bravo, papai. Antes de conseguir terminar, porém, Lita notou um brilho tipo de papel celofane com o reflexo do sol nos olhos de seu pai. E, por medo do desconhecido, parou de falar, de se mexer, quase que de respirar.

Mas não foi preciso esperar muito. Manolo tratou de desembuchar toda a sua idéia. Chamou Lina e Lela, que espiavam, curiosas e apreensivas, detrás da cortina de tecido que comunicava o armazém com a residência dos Bastos Quintão, e pediu para que tirassem os sapatos.

Lembrando de seus tempos de criança descalço às margens do Rio Côa, Manolo se recordou da beleza de seus pezinhos. Viajando mentalmente até a primeira noite junto com Leonor, viu nela um defeito que quase lhe fez anular o casamento - os pés de sua bela Leonor eram o inverso de seu rosto angelical.

Pela primeira vez, Manolo orgulhou-se de seu gene dominante. As meninas tinham belos pés, tornozelos bem torneados, unhas saudáveis e de boa forma, e cinco (ufa) dedos harmoniosos em cada pé.

[Aliás, essa era a grande preocupação de Manolo quando as meninas nasceram, ainda mais as gêmeas, que estrearam no mundo após um parto sofrido de 30 horas: o papai só respirou aliviado ao ver que elas tinham 5 dedos em cada pé (e em cada mão, o que não importava muito neste momento epifânico de Manolo).]

[Cenas do próximo capítulo: indisponíveis. Mas logo publico o restante da novela]


*Pode não parecer, mas esta história é pura ficção. Eventuais semelhanças com a vida real são meras coincidências.








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